Enquanto isso, as privatizações saem na frente, a passos rápidos, em outros lugares. Para que se cite um caso da maior importância, o governo brasileiro decidiu, passando por cima de uma considerável oposição popular, privatizar a Companhia Vale do Rio Doce, que controla imensas fontes de urânio, ferro e outros minerais, além de instalações industriais e transportes com sofisticada tecnologia. A Vale é uma empresa altamente lucrativa, com receita de mais de 5 bilhões de dólares em 1996, e com excelentes perspectivas; é uma das seis emPresas latino-americanas ranqueadas entre as 500 mais lucrativas do mundo. Um estudo feito por especialistas da Coordenação dos Programas de Pós-Graduação da Escola de Engenharia da UFRJ estimou que o governo brasileiro sub-avaliou seriamente a companhia, observando também que ele se baseou na análise “independente” da Merril Lynch, que, por acaso, é associada ao grupo anglo-americano que pretende assumir o controle desse componente central da economia brasileira. O governo rebate veementemente essas conclusões. Se elas estiverem certas, estaremos diante de uma situação bastante familiar.
Nos trabalhos sobre a história dos negócios nos Estados Unidos, é comum considerar como tema principal o fato de que “as empresas modernas tomaram o lugar dos mecanismos de mercado na coordenação das atividades econômicas e na alocação de recursos”, sendo muitas transações manejadas internamente, o que constitui outro grande desvio dos princípios do mercado. Mas há outros. Consideremos, por exemplo, o destino do princípio smithiano de que a livre movimentação de pessoas – através das fronteiras, por exemplo – é um componente essencial do livre comércio. Quando nos transportamos para o mundo dos conglomerados transnacionais, com suas alianças estratégicas e o suporte essencial de Estados poderosos, o hiato entre doutrina e realidade toma-se evidente.
Vale a pena notar que, em segredo, as intenções costumam ser expressas com franqueza. Por exemplo, no período imediatamente posterior à II Grande Guerra, George Kennan, um dos mais influentes planejadores e considerado grande humanista, atribuiu a cada parte do mundo a sua “função”: a função da África era ser “explorada” para a reconstrução da Europa, observou ele; os Estados Unidos tinham pouco interesse no continente. Um ano antes, um estudo de planejamento de alto nível exortara que “o desenvolvimento cooperativo de gêneros alimentícios e matérias primas baratas no norte da África poderia ajudar a forjar a unidade européia e a criar uma base econômica para a recuperação do continente”, um interessante conceito de “cooperação”.70 Não há registro de nenhuma sugestão no sentido de a África “explorar” o Ocidente para recuperar-se do “meliorismo global” dos séculos anteriores.
A mim, a realidade parece bem diferente. O atual leque de políticas públicas em discussão tem tão pouca relevância programática quanto seus numerosos antecedentes: nem os Estados Unidos nem qualquer outro poder orientaram-se pelo “meliorismo global”. A democracia está sendo atacada no mundo inteiro, até mesmo nos principais países industrializados; pelo menos a democracia no sentido significativo da palavra, que supõe oportunidades para as pessoas tratarem de seus próprios assuntos coletivos e individuais. Algo similar vale para os mercados. Os ataques à democracia e aos mercados estão profundamente relacionados. Suas raízes estão fincadas no poder de entidades empresariais cada vez mais interconectadas, cada vez mais dependentes de estados poderosos e menos controláveis pelo público. O imenso poder dessas entidades vem crescendo como resultado de uma política social que está globalizando o modelo estrutural do Terceiro Mundo, com setores incrivelmente ricos e privilegiados lado a lado com o aumento “da parcela dos que irão labutar sob as agruras da vida e alimentar secretas aspirações de uma distribuição mais igualitária de suas bênçãos”, como previu James Madison, o principal estruturador da democracia norte-americana, há dois séculos, Essas opções políticas são absolutamente evidentes nas sociedades anglo-americanas, mas se estendem por todo o mundo. Elas não podem ser atribuídas àquilo que o “livre mercado decidiu em sua infinita e misteriosa sabedoria”33, ao “ímpeto implacável da ‘revolução do mercado”‘, ao “inflexível individualismo da era Reagan”, nem à “nova ortodoxia” que “dá rédea solta ao mercado”. Ao contrário, a intervenção estatal, desempenha um papel decisivo, como no passado, e os contornos básicos dessas políticas dificilmente podem ser vistos como novidade. As versões atuais refletem a “clara subjugação do trabalho pelo capital” durante mais de quinze anos, segundo a imprensa de negócios, que relata freqüentemente, com precisão, as concepções de uma comunidade de negócios altamente consciente de sua condição e dedicada à guerra de classes.
Se essas idéias são válidas, então o caminho para um mundo mais justo e mais livre está muito afastado do campo delimitado pelo privilégio e pelo poder. Não pretendo aqui provar essa conclusão, mas apenas sugerir que ela é verossímil o bastante para ser analisada com atenção. E pretendo sugerir ainda que as doutrinas predominantes dificilmente sobreviveriam se não fosse por sua contribuição para a “arregimentação da opinião pública, da mesma forma como um exército arregimenta seus soldados”, para citar novamente Edward Bernays, quando expôs ao mundo dos negócios as lições que haviam sido aprendidas com a propaganda do tempo de guerra.
Enquanto isso, o mundo dos negócios alertava para o “risco com que se defrontavam os industriais” no “recém-percebido poder político das massas” e para a necessidade de livrar e vencer “a perpétua batalha pelas mentes dos homens” e “doutrinar os cidadãos com a crônica do capitalismo” até que “eles sejam capazes de repeti-la com absoluta fidelidade”; e assim por diante, numa torrente impressionante, acompanhada por esforços ainda mais impressionantes.
Para descobrir o verdadeiro sentido dos “princípios políticos e econômicos” ditos “a onda do futuro”, é evidentemente necessário ir além dos floreios retóricos e pronunciamentos públicos e investigar a prática efetiva e os documentos internos. O exame cuidadoso de casos particulares é o caminho mais frutífero, mas eles devem ser escolhidos com muito cuidado, para que apresentem um quadro justo. Há algumas diretrizes naturais. Um método razoável é tomar os exemplos escolhidos pelos próprios proponentes das doutrinas, os seus casos mais fortes. Outro é investigar documentos em que é máxima a influência e mínima a interferência, de forma que possamos enxergar os princípios operativos em sua forma mais pura. Se queremos determinar o que o Krernlin entendia por “democracia” e “direitos humanos”, devemos dar pouca importância às solenes denúncias do Pravda sobre o racismo nos Estados Unidos e o terror estatal de seus regimes clientes, e muito menos aos reclamos de suas nobres motivações. Muito mais instrutivo é a realidade das “democracias populares” no Leste europeu. Essa é uma questão elementar que se aplica também ao auto-designado “guardião e modelo”. A América Latina é a área de testes óbvia, especialmente a América Central e o Caribe. Aqui, Washington enfrentou poucos desafios externos durante quase um século, de modo que os princípios norteadores da sua política, assim como do atual “Consenso [neoliberal] de Washington”, se revelam de um modo claríssimo quando examinamos a situação da região e como se chegou a ela.
É de certo interesse o fato de que este tipo de exercício raramente é realizado e, quando proposto, seja acusado de extremista ou coisa pior. Deixo-o como um “exercício para o leitor”, apenas chamando a atenção para o fato de que esta história contém lições úteis sobre os princípios econômicos e políticos do que vem a ser a “onda do futuro”.
A dita “cruzada pela democracia” de Washington foi empreendida com particular fervor durante os anos Reagan, tendo sido escolhida a América Latina como campo de manobras. Seus resultados são usualmente apresentados como o principal exemplo de como os Estados Unidos vieram a se tomar a “inspiração para o triunfo da democracia em nosso tempo”, para citar os editores de uma das principais publicações teóricas do liberalismo norte-americano.37 O mais recente artigo acadêmico sobre a democracia descreve o “renascimento da democracia na América Latina” como “impressionante”, mas não isento de problemas; os “obstáculos à sua implementação” ainda são “formidáveis”, mas talvez possam ser superados por meio de uma maior integração com os Estados Unidos. O autor, Sanford Lakoff, assinala o “histórico Acordo de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA) como um instrumento de democratização potencial. Nessa região de tradicional influência dos Estados Unidos, escreve, os países marcham em direção à democracia depois de terem “sobrevivido a intervenções militares” e “perversas guerras civis”.
Grandes mudanças ocorreram na ordem global no último quarto de século. Em 1970, a “aliança afluente” dos anos do pós-guerra começava a fazer água e crescia a pressão sobre os lucros das grandes empresas. Reconhecendo que os Estados Unidos não podiam mais desempenhar o papel de “banqueiro internacional” que fora tão benéfico para as multinacionais baseadas em território norte-americano, Richard Nixon desmantelou a ordem econômica internacional (o sistema de Bretton Woods), suspendendo a convertibilidade do dólar em ouro, impondo controles sobre os salários, sobretaxas de importação e medidas fiscais para colocar o poder do Estado, ainda mais do que antes, a serviço da prosperidade dos ricos. Desde então, esta tem sido a política dirigente, acelerada durante os anos de Reagan e mantida pelos “Novos Democratas”. Intensificou-se a incessante guerra de classes livrada por setores empresariais corporativos, do escala global.
Os movimentos de Nixon foram um dentre uma série de fatores que levaram a um enorme crescimento do capital financeiro não regulado e a uma mudança radical do seu uso, do comércio e o investimento a longo prazo para a especulação. Eles lograram debilitar o planejamento econômico dos países, uma vez que os governos foram compelidos a preservar a “credibilidade” do mercado, empurrando suas economias para um “equilíbrio de baixo crescimento e forte desemprego”, como diz o economista John Eatwell, da Universidade de Cambridge, com salários reais estagnados ou declinantes, pobreza e desigualdade crescentes e mercados e lucros em expansão para uma minoria. O processo associado de internacionalização da produção proporciona novas armas para enfraquecer os trabalhadores do Ocidente, que têm de aceitar a perda de seu “luxuoso” modo de vida e concordar com a “flexibilização do mercado de trabalho” (a pessoa não saber se terá emprego no dia seguinte), rezam com alegria os cadernos de negócios. O retomo da maior parte da Europa Oriental às suas origens terceiro-mundistas realça consideravelmente tais perspectivas. O ataque aos direitos dos trabalhadores, aos padrões sociais e à democracia efetiva em todo o mundo é o produto dessas vitórias.
O triunfalismo desses pequenos setores de elite é bastante compreensível, assim como o desespero e o ódio dos que não pertencem aos círculos de privilegiados.
A revolta dos índios camponeses de Chiapas no dia de Ano-Novo pode ser prontamente entendida neste contexto geral. Ela coincidiu com a aprovação do NAFTA, que o exército zapatista chamou de “uma sentença de morte” para os índios, um presente para os ricos que aprofundará o fosso entre a extrema concentração da riqueza e a miséria das massas e destruirá o que resta da sociedade nativa.
A conexão NAFTA é em parte simbólica; os problemas são, em verdade, muito mais profundos. “Somos o produto de 500 anos de luta”, dizia a declaração de guerra zapatista. Nossa luta hoje é “por trabalho, terra, moradia, alimentos, saúde, educação, independência, liberdade, democracia, justiça e paz”. “Sua verdadeira origem”, acrescentou o vigário-geral da diocese de Chiapas, “é a completa marginalização, a pobreza e a frustração de tantos anos de luta para melhorar a situação”.
Os índios camponeses são as maiores vítimas das políticas do governo mexicano. Mas sua aflição é compartilhada por muitos. “Quem quer que tenha tido a oportunidade de estar em contato com os milhões de mexicanos que vivem na extrema pobreza sabe que estamos convivendo com uma bomba-relógio”, observou a jornalista mexicana Pilar Valdes.
Em dez anos de reformas econômicas, o número de pessoas vivendo na pobreza absoluta aumentou em um terço nas áreas rurais. Metade da população total não dispõe de recursos para atender às suas necessidades básicas, um crescimento dramático desde 1980. Seguindo a receita do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial, a produção agrícola foi substituída pela agro- exportação e pelas pastagens, beneficiando a agroindústria, os consumidores estrangeiros e os setores afluentes do país, enquanto a desnutrição veio a se tomar um dos principais problemas de saúde, o emprego agrícola declinou, as terras produtivas foram abandonadas e o México passou a importar enormes quantidades de alimentos. Os salários reais da indústria caíram verticalmente. A parcela do trabalho no PIE, que vinha subindo até meados da década de 1970, declinou, desde então, em mais de um terço. São as típicas conseqüências das reformas neoliberais. Estudos do FMI mostram “um padrão forte e consistente de redução da parcela do trabalho na renda total” sob o impacto dos seus “programas de estabilização” na América Latina, observa o economista Manuel Pastor.
O Secretário de Comércio mexicano saudou a queda dos salários como um incentivo ao investimento estrangeiro. E assim é, junto com a eliminação de postos de trabalho, a coação ao afrouxamento de restrições ambientais e o direcionamento da política social para satisfazer as ambições da minoria privilegiada. Essas políticas são bem-vindas, é claro, para as instituições industriais e financeiras que estendem seu controle sobre a economia global, com a assistência de acordos falsamente rotulados como de “livre mercado”.
Existe a expectativa de que o NAFTA force uma grande quantidade de camponeses a abandonar suas terras, contribuindo para a miséria no campo e o barateamento da mão-de-obra na indústria. O emprego industrial, que diminuiu sob as reformas, deverá cair ainda mais. Um estudo do mais importante jornal empresarial mexicano, o El Financeiro, previu que o México perderia quase 25 por cento da sua indústria manufatureira e 14 por cento do emprego atual nos dois anos seguintes. Segundo Tim Golden, do New York Times, “Os economistas prevêem que milhões de mexicanos deverão perder os seus empregos nos primeiros cinco anos de vigência do NAFTÀ”. Tais processos farão diminuir ainda mais os salários, na mesma medida em que farão crescer os lucros e a polarização da sociedade, com repercussões previsíveis nos Estados Unidos e no Canadá.
Grande parte do apelo do NAFTA, conforme sublinham regularmente os seus mais ardorosos defensores, está no fato de que ele “amarra” as reformas neoliberais que reverteram anos de progresso dos direitos trabalhistas e do desenvolvimento econômico, trazendo pobreza e sofrimento em massa, junto com o enriquecimento de uma minoria de mexicanos e investidores estrangeiros. Para a economia mexicana em geral, essa “virtude econômica” trouxe “poucas recompensas”, segundo observou o Financial Times, de Londres, ao analisar “oito anos de políticas de mercado saídas dos livros de economia”, que geraram um baixo crescimento, atribuído, em sua quase totalidade, à assistência financeira do Banco Mundial e dos Estados Unidos. As altas taxas de juro reverteram parcialmente à imensa evasão de capitais que era um dos principais fatores da crise de endividamento mexicana, embora o serviço da dívida seja um ônus crescente, cujo maior componente atualmente é a dívida interna do governo com os mexicanos ricos.
Um “Comunicado dos Bispos Mexicanos sobre o NAFTA” condenou o acordo e também a política econômica do qual ele faz parte, devido aos seus efeitos sociais deletérios. Os bispos reiteraram a preocupação da conferência de bispos latino-americanos de 1992, de que “a economia de mercado não se tome um absoluto ao qual tudo deva ser sacrificado, aumentando a desigualdade e a marginalização de grande parte da população” – o provável impacto do NAFTA e de outros acordos sobre os direitos dos investidores. A reação da comunidade de negócios mexicana foi variada: os elementos mais poderosos apoiaram o acordo, ao passo que as pequenas e médias empresas e suas organizações foram dúbias ou hostis. O mais importante jornal mexicano, Excelsior, previu que o NAFTA beneficiaria apenas “aqueles ‘mexicanos’ que hoje são donos de quase metade do país (15 por cento detêm mais da metade do PIB)”, “uma minoria dês-mexicanizada”, e constituiria uma nova fase da “história dos Estados Unidos em nosso país”, uma “história de abusos e pilhagens impunes”. O acordo teve também a oposição de muitos trabalhadores (incluindo o maior sindicato não- governamental) e de outros grupos, que advertiram para o impacto sobre os salários, os direitos trabalhistas e o meio ambiente, para a perda da soberania nacional, a crescente proteção dos direitos dos investidores e das empresas e a corrosão das possibilidades de crescimento sustentável. Homero Aridjis, presidente da mais importante organização ambiental mexicana, deplorou “a terceira conquista do México. A primeira, militar, a segunda, espiritual, e a terceira, econômica”.
Não demorou muito para que tais temores se concretizassem. Pouco depois de o NAFTA ter sido aprovado no Congresso, trabalhadores foram demitidos nas fábricas da Honeywell e da GE por tentar organizar sindicatos independentes. A Ford Motor Company despedira todos os seus operários em 1987, desconhecendo o acordo sindical e re-contratando trabalhadores por salários muitos menores. Os protestos que se seguiram foram energicamente reprimidos. Em 1992, foi a vez da Volkswagen, que demitiu 14 mil operários e readmitiu somente aqueles que repudiaram os líderes dos sindicatos independentes, com o apoio do governo. Esses são os componentes centrais do “milagre econômico” que o NAFTA vai “amarrar”.
Poucos dias depois da votação do NAFTA, o Senado dos Estados Unidos aprovou “o mais extraordinário pacote anticrime da História (senador Orrin Hatch)’, que continha a incorporação de cem mil novos policiais, prisões regionais de segurança máxima, campos de treinamento para jovens infratores, extensão da pena de morte e sentenças mais severas, além de outras duras medidas. Especialistas em segurança pública entrevistados pela imprensa duvidaram de que a nova legislação pudesse ter um efeito significativo contra o crime, uma vez que não cuidava das “causas da desintegração social que produz os criminosos(violentos”. As principais dentre elas são as políticas econômicas e sociais que polarizam a sociedade americana, e que o NAFTA colocou alguns furos acima. Os conceitos de “eficiência” e “economia saudável”, prediletos dos ricos e privilegiados, não têm nada a oferecer aos crescentes setores da população que não dão lucro e que são empurrados para a pobreza e o desespero. Se não puderem ser confinados nas favelas, terão de ser controlados de um outro modo qualquer.
No dia seguinte à votação do NAFTA no Congresso, o New York Times publicou a sua primeira análise sobre os efeitos esperados do acordo na região de Nova York. Era uma análise otimista, coerente com o apoio entusiástico recebido em toda parte. Enfocava os prováveis beneficiários: os setores “financeiros e afins”, “os bancos regionais, as telecomunicações e as empresas prestadoras de serviços”, companhias de seguros, investidoras, empresas de serviços jurídicos, a indústria de relações públicas, as consultorias de negócios e congêneres. Previa ainda que algumas empresas manufatureiras poderiam ganhar, principalmente as de tecnologia de ponta, as editoras e os laboratórios farmacêuticos, que se beneficiariam das medidas protecionistas elaboradas para garantir às grandes empresas o controle da tecnologia do futuro. De passagem, o artigo mencionava que também haveria perdedores, “predominantemente mulheres, negros e hispânicos”, além dos “trabalhadores não-especializados” em geral, isto é, a maioria da população de uma cidade onde 40 por cento das crianças já vivem abaixo da linha de pobreza, sofrendo de deficiências de saúde e instrução que as “amarram” a um amargo destino.
A versão aprovada do NAFTA provavelmente acelerará um “desenvolvimento positivo de transcendental importância” (Wall Street Joumal): a redução do custo da força de trabalho norte- americana a níveis bem abaixo de todos as potências industriais à exceção da Inglaterra. Em 1985, os Estados Unidos situavam-se no topo da lista das sete maiores economias capitalistas (0-7), como era de esperar do país mais rico do planeta. Numa economia mais integrada, o impacto é mundial, uma vez que os competidores precisam se acomodar. A OM pode se mudar para o México ou agora para a Polônia, onde encontra quem se disponha a trabalhar por uma fração do valor do trabalho no Ocidente e está protegida por altas tarifas e outras restrições. A Volkswagen pode se mudar para a República Tcheca para desfrutar de proteção semelhante, recolhendo os lucros e deixando o governo com os custos. A Dairnler-Benz pode fazer arranjos do mesmo tipo no Alabama. O capital pode se mover livremente; os trabalhadores e as comunidades ficam com as conseqüências. Ao mesmo tempo, o gigantesco crescimento do capital especulativo não regulado impõe pesadas pressões sobre as políticas governamentais de estímulo à produção.
Muitos fatores estão empurrando a sociedade global em direção a um futuro de baixos salários, baixo crescimento e elevados lucros, com polarização f desintegração social crescentes. Outra conseqüência é o esmorecimento dos processos democráticos significativos, à medida que a tomada de decisões é transferida às instituições privadas e estruturas para-governamentais que se vão aglutinando à sua volta, aquilo que o Financial Times chama de “governo mundial de fato”, que opera em segredo e não tem nenhum controle público.
Esses desenvolvimentos têm muito pouco a ver com o liberalismo econômico, um conceito de limitada significância num mundo no qual uma vasta parcela do “comércio” consiste de transações intra-empresas, centralmente administradas (metade das exportações norte-americanas para o México antes do NAFTA, por exemplo – “exportações” que nunca chegaram a entrar no mercado mexicano). Ao mesmo tempo, o poder privado exige e recebe, como no passado, proteção estatal contra as forças do mercado.
“Os zapatistas realmente mexeram com a sensibilidade de um amplo segmento das massas populares mexicanas”, comentou o cientista político mexicano Eduardo Gallardo, pouco depois da insurreição, prevendo que suas repercussões seriam de longo alcance, incluindo passos no sentido da derrubada da longa ditadura eleitoral mexicana. Pesquisas realizadas no país confirmaram esse ponto de vista, dando conta do apoio da maioria às razões apresentadas pelos zapatistas para a insurreição. A mesma sensibilidade foi tocada no mundo inteiro, até mesmo nas sociedades industriais ricas, onde muitas pessoas reconheceram que as preocupações dos zapatistas não eram diferentes das suas próprias, apesar das circunstâncias tão diversas. O apoio dessas pessoas foi ainda mais estimulado pelas criativas ações zapatistas dirigidas aos setores mais amplos da população, visando engaja-los em esforços conjuntos ou paralelos para assumir o controle de suas vidas e seu destino. A solidariedade mexicana e internacional foi, sem dúvida, fator preponderante para inibir a brutal repressão militar que se previa e teve um espetacular efeito energizante sobre a organização e o ativismo em todo o mundo.
O protesto dos índios camponeses em Chiapas é somente um vislumbre de outras “bombas- relógio” prestes a explodir e não apenas no México. Boa parte deste artigo foi publicada pela primeira vez em In These Times, em 21 de fevereiro de 1994.
A “construção da América das sociedades anônimas” ao longo do último século foi um ataque à democracia – e aos mercados, e é parte da transformação de algo que se assemelhava ao “capitalismo” nos mercados fortemente administrados da moderna era do Estado e das S.A. Uma variante atual é chamada de “diminuição do Estado”, ou seja, a transferência do poder decisor da arena pública para outros lugares: “para as pessoas”, na retórica do poder; para as tiranias privadas, no mundo real. Todas essas medidas são projetadas para limitar a democracia e domar a “gentalha”, como era chamada a população por aqueles que se auto-designavam “homens bons” na Inglaterra do século 17, ao tempo da primeira irrupção da democracia na época moderna; os auto-designados “homens responsáveis” de hoje. Os problemas básicos persistem, assumindo formas sempre novas, suscitando novas medidas de controle e marginalização e conduzindo a novas formas de luta popular.
Os chamados “acordos de livre comércio” são um desses dispositivos de enfraquecimento da democracia. Eles são projetados para transferir a tomada de decisões que afetam a vida e as aspirações das pessoas para o âmbito de tiranias privadas que operam em segredo, sem qualquer supervisão ou controle público. Não surpreende que o público não goste delas. A oposição é quase instintiva, um tributo ao cuidado que se toma para isolar a gentalha da informação e do conhecimento relevantes.
A maior parte desse quadro é tacitamente admitida. Acabamos de testemunhar um outro exemplo: o empenho com que se tentou, nos últimos meses, aprovar o Fast Track, legislação que permitiria ao Executivo negociar acordos comerciais diretamente, sem a supervisão do Congresso nem o conhecimento do público; um mero “sim” ou “não” bastaria. O Fast Track gozava de apoio quase unânime no interior dos sistemas de poder, mas, como observou pesarosamente o Wall Street Journal, os seus adversários talvez tenham uma “arma definitiva”: a maioria da população. As pessoas continuaram se opondo ao Fast Track apesar do bloqueio da mídia, acreditando ingenuamente que precisam saber o que está acontecendo com elas e ter voz nas decisões. Da mesma maneira, o NAFTA foi aprovado à revelia da oposição pública, que se manteve firme apesar do apoio entusiástico e quase unânime do poder estatal e empresarial, incluindo a sua mídia, que se recusou até mesmo a permitir que o principal adversário do tratado (o movimento organizado dos trabalhadores) se expressasse, enquanto o denunciava por diversos delitos inventados.
O Fast Track foi pintado como uma questão de “livre mercado”, mas não é bem assim. O mais ardente defensor do “livre mercado” se oporia radicalmente ao Fast Track se acreditasse na democracia, pois é disso que se trata. Fora isso, os acordos projetados dificilmente poderiam, mais do que o NAFTA e o GATT/OMC, ser qualificados de acordos de livre comércio, questão que já tivemos oportunidade de discutir.
A razão oficial do Fast Track foi expressa pelo Delegado da Representação Comercial dos Estados Unidos, Jeffrey Lang: “O princípio básico das negociações é o de que somente urna pessoa [o Presidente] pode negociar em nome dos Estados Unidos”.73 O papel do Congresso é apenas endossar, e o do público, ficar olhando – de preferência para o outro lado.
O “princípio básico” é bastante real, mas seu alcance é pequeno. Vale para o comércio, não para outras questões: direitos humanos, por exemplo. Aqui o princípio é oposto: deve-se dar aos membros do Congresso todas as oportunidades de assegurar que os Estados Unidos mantenham seu índice de não-ratificação de acordos, um dos piores do mundo. As poucas convenções que chegaram ao Congresso ficaram anos aguardando votação, e as que chegaram a ser sancionadas foram sobrecarregadas de condições que as tornam inoperantes nos Estados Unidos; não são “auto- executáveis” e possuem ressalvas específicas. Comércio é urna coisa; tortura e direitos das mulheres e crianças, outra.
Ao construir a sua política de direitos humanos para a China, o governo deve ter se lembrado do instrutivo conselho de urna missão militar de Kennedy à Colômbia: “Quando necessário, executar ações paramilitares, de sabotagem e/ou terroristas contra comunistas conhecidos” (termo que abrange camponeses, sindicalistas, ativistas de direitos humanos etc.). Os alunos aprenderam bem a lição, colecionando o pior recorde de direitos humanos da década de 1990 no hemisfério, com assistência e treinamento militar cada vez maior dos Estados Unidos.
Há dois séculos, na principal democracia da época, Oliver Goldsmith observou que “a lei oprime os pobres, os ricos fazem a lei” – a lei na prática, isto é, independentemente do que digam as belas palavras. Esse princípio continua válido.
Quando a corporativização das sociedades capitalistas de estado ocorreu há um século, em parte como resposta às enormes deficiências do mercado, os conservadores – uma estirpe quase extinta hoje em dia – se opuseram a esse ataque com base nos princípios fundamentais do liberalismo clássico. E com justa razão. Poderíamos relembrar a crítica de Adam Smith às “sociedades por ações” do seu tempo, particularmente quando à administração era concedido um certo nível de independência; e também a sua atitude em face da corrupção inerente ao poder privado, à presumível “conspiração contra o público”, em sua visão mordaz, quando os homens de negócios se encontram para almoçar, que dirá quando constroem entidades de direito coletivo e suas alianças recíprocas, com direitos extraordinários outorgados, apoiados e reforçados pelo poder de estado.
Há poucas surpresas aqui. Os criadores do sistema econômico internacional do segundo pós- guerra defendiam a liberdade de comércio, mas também a regulação do capital; essa foi a estrutura básica do sistema de Bretton Woods, de 1944, incluindo a Carta do FMI. Uma das razões para isso era o temor (bastante plausível) de que a liberalização do capital financeiro obstaculizasse a liberdade de comércio. Outra era o reconhecimento de que ela seria uma poderosa arma contra a democracia e o Estado do bem-estar, que tinha um enorme apoio popular. A regulação do capital permitiria aos governos implementar políticas monetárias e fiscais e sustentar programas sociais e de pleno emprego sem o temor da fuga de capitais, conforme assinalou na época o negociador dos Estados Unidos, Harry Dexter White, com a aprovação de seu colega britânico, John Maynard Keynes. O livre fluxo de capitais, ao contrário, criaria o que alguns economistas internacionais chamam de um “senado virtual”, no qual o capital financeiro altamente concentrado impõe as suas próprias políticas sociais sobre populações refratárias e pune governos dissidentes com a fuga de capitais.90 Os supostos de Bretton Woods prevaleceram largamente durante os anos 1950 e 1960, a “Época de Ouro”, com seus elevados índices de crescimento da economia e da produtividade e ampliação do contrato social. Esse sistema foi desmantelado por Richard Nixon com o apoio da Grã-Bretanha e, mais tarde, por outras grandes potências. A nova ortodoxia institucionalizou-se no âmbito do Consenso de Washington. Seus resultados se coadunam muito bem com os temores dos criadores do sistema de Bretton Woods.
O Economist revela ainda outros problemas. Questões ecológicas e trabalhistas, que “no início mal apareciam”, estariam se tomando difíceis de suprimir. Está mais difícil conter os paranóicos e catastrofistas que “querem inserir padrões elevados de trabalho e de proteção ambiental a serem respeitados pelos investidores estrangeiros”, e cujos “intensos ataques, disseminados por uma rede de sites da Internet, têm deixado os negociadores inseguros a respeito da forma como devem agir”93. Uma possibilidade seria ouvir os anseios do público. Mas essa hipótese não é mencionada: é excluída por princípio, como antagônica à própria essência do negócio.
É importante que a população em geral procure descobrir o que está sendo preparado para ela. O empenho do governo e da mídia em manter tudo encoberto, exceto para o seu “público interno” oficialmente reconhecido, é certamente compreensível. Mas essas barreiras já foram superadas por ações públicas vigorosas e podem ser superadas outra vez.
“Este é o lugar onde os governos ‘conspiram em privado’ contra os seus grupos internos de pressão, diz um ex-funcionário da OMC”. Se as muralhas forem rompidas, a OMC e outras organizações secretas dos ricos e poderosos poderão se transformar em “um alegre campo de caça para interesses especiais”: trabalhadores, agricultores, pessoas preocupadas com a segurança social e econômica, com a segurança alimentar e com o destino das gerações futuras, além de outros componentes marginais extremistas que não entendem que os recursos só são eficientemente utilizados quando orientados pelo lucro a curto prazo para o poder privado, ajudado por governos que “conspiram em privado” para proteger e aumentar o seu poder.
É supérfluo acrescentar que os lobbies e grupos de pressão que estão despertando tanto medo e consternação não são o Conselho de Assuntos Internacionais dos EUA, “advogados e homens de negócios” que estão “escrevendo as regras da ordem global” e similares, mas a “voz pública” que está “invariavelmente ausente”.
A “conspiração em privado” vai muito além dos acordos comerciais, é claro. A responsabilidade do público em assumir custos e riscos é, ou deveria ser, conhecida dos observadores como o que seus acólitos gostam de chamar de “economia capitalista de livre iniciativa”. No mesmo artigo, Uchitelle relata que a Caterpillar, que recentemente usou o seu excesso de capacidade produtiva no exterior para derrotar uma greve no país, transferiu 25 por cento da sua produção para o estrangeiro e pretende aumentar as vendas desde o exterior em 50 por cento até 2010, com a ajuda dos contribuintes norte-americanos: “O ExportImport Bank desempenha um papel significativo na estratégia [da Caterpillar]” , com “empréstimos a juros baixos” a fim de facilitar a operação. Os empréstimos do banco já representam quase dois por cento da receita anual de 19 bilhões de dólares da empresa e aumentarão com os novos projetos que vêm sendo elaborados para a China. Esse é um procedimento operacional típico: os conglomerados multinacionais geralmente buscam apoio em seus Estados nacionais para serviços essenciais.99 “Em mercados realmente duros, de riscos elevados e grandes oportunidades”, diz um executivo da Caterpillar, “precisamos realmente ter alguém nos apoiando no canto do ringue”, e os governos – especialmente os poderosos – “sempre terão mais influência” que os bancos e maior boa vontade para oferecer empréstimos a juros baixos, graças à liberalidade do contribuinte desavisado.
O comando deve permanecer nos Estados Unidos, de modo que as pessoas que contam estarão próximas de nossos segundos no canto do ringue, podendo desfrutar de um estilo de vida apropriado, diante de uma paisagem mais amena: os barracos onde mora a força de trabalho estrangeira não atrapalharão a vista. Lucros à parte, essa operação proporciona uma formidável arma contra os trabalhadores que ousam levantar a cabeça (como ilustra a recente greve) e que fazem a sua parte pagando pela perda de seus empregos e pelas armas aperfeiçoadas da guerra de classes. E, mais importante, tudo isso melhora a saúde “da economia da carochinha”, que se apóia no “aumento da insegurança do trabalhador”, como dizem os especialistas.
No conflito em tomo do AMI, as linhas não poderiam ter sido traçadas com maior firmeza. De um lado estão as democracias industriais e seus “públicos internos”. Do outro, as “hordas de vigilantes”, “interesses especiais” e “extremistas marginais” que exigem transparência e controle público e que ficam aborrecidos quando os parlamentos apenas endossam os acordos secretos da conexão estatal-privada de poder. As hordas enfrentavam a maior concentração de poder do mundo, provavelmente de toda a História: os governos dos Estados ricos e poderosos, as instituições financeiras internacionais e os setores financeiro e industrial concentrados, incluindo os conglomerados do setor de comunicação. E os elementos populares venceram – apesar dos seus minúsculos recursos e de uma organização tão limitada que somente a paranóia daqueles que exigem o poder absoluto pôde perceber o seu resultado nos termos que acabamos de analisar. Esta é uma conquista extraordinária.
Mesmo sabendo que o poder e o privilégio com certeza não vão descansar, as vitórias populares devem ser inspiradoras. Elas ensinam lições sobre o que se pode conquistar mesmo quando a desigualdade das forças em luta é tão bizarra quanto à do confronto em torno do AMI. É verdade que são vitórias defensivas. Mas elas impedem, ou pelo menos adiam, o enfraquecimento ainda maior da democracia e a transferência de mais poderes para as mãos das tiranias privadas em rápido processo de concentração, que querem administrar os mercados e se constituir num “Senado virtual” que dispõe de diversos meios de frustrar o desejo popular de usar as formas democráticas em benefício do interesse do público: a ameaça da fuga de capitais, a transferência das unidades de produção, o controle da mídia e outras formas de coação. Devemos prestar muita atenção ao medo e ao desespero dos poderosos. Eles compreendem muito bem o alcance da “arma definitiva” e só esperam que aqueles que buscam um mundo mais livre e justo não adquiram essa mesma compreensão e a coloquem efetivamente em uso.